Primavera


os ventos passam pelas flores e arrancam-lhe pétalas do meu cabelo. quando as olho, na sua cor efervescente lembro-me dele. não porque ele seja vento, muito menos uma pétala, mas porque, assim como as flores, ele se senta à espera de apodrecer, não reconhecendo que pouco a pouco cobre os campos da serra. ele aparece fechado atrás das vidraças, que embacia com a sua respiração abafada, e espera que o nevoeiro do seu coração desapareça, para finalmente voltar para a rua. penso por vezes vê-lo, escondido atrás do seu olhar, mas repentinamente pisco os olhos e já não o vejo. sei, no entanto, que sou a única que o vê, e que, mesmo por vezes sendo a minha única visão, os olhos verdejantes e vidrados, criados por ser maior, lhe vejo a alma que descansa no fundo do seu ser. ontem, ele abriu a janela e sorriu meio atordoado, como se não estivesse habituado a sorrir, porque se calhar não está. quando me adormece e me mostra os seus sonhos, torno-me espuma do mar, fluida e encantada, mais imaginada do que real, pronta a recebê-lo nas madrugadas em que ele sai à praia.

durante o dia, sou de novo flor, e fico sentada a ouvi-lo, coisa que lhe parece talvez enfadonha, mas que a mim me traz orgulho, não porque ele se sentou ao pé de mim, embora isso seja agradável, mas porque consegue falar-me de si e consigo ouvir-lhe os pensamentos.

eu sei que ele acha que é inverno. que não renasce a cada momento e não transborda de emoção a cada palavra, mas também sei o que escuto, e escuto-o sendo divino. por não ser vermelho, murmura ele, acha não ser capaz de florir, mas se calhar ele é tão flor como eu, tão vibrante como as minhas pétalas e cheira tão bem como o meu aroma.

meu girassol, não é por necessitares do sol que te tornas menos grandioso ou que nunca vais florir. eu sei que ainda vais florir sem o sol. então levanta os teus olhos de mim, que eu prefiro que me deixes ir do que estejas preso a alguém. volta quando o sol se for embora, e precisares de baixar a coroa para chorares, que eu vou receber as tuas lágrimas e abraçar-te o mais que posso. lembra-te, meu girassol, que não é por não seres uma rosa que não és parte da primavera.

Alícia Yan

 

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