Piano


 

Finalmente, deixei o piano. No canto da sala, no canto do meu coração e, mais importante, fora da minha memória. As honras que já me havia dado nada mais importavam para mim, pois tudo o que fora com ele conquistado dependia de dor e lágrimas, nunca de felicidade. Às vezes, ao olhá-lo de relance, algumas memórias eram invocadas, claro que nenhuma feliz, e todas as que deveriam ser apagadas. Desde o dia em que o deixei, vi-me forçada a conquistar outras tantas relíquias que iriam, após algum tempo, ficar ao lado do piano e cujas memórias seriam também, no futuro, apagadas. No entanto, não ganhei mais nada. Nada de valioso, pelo menos. Só um atestado e uma caixa de medicamentos. Ironicamente, para estes não tive de forçar-me a apagar as memórias, porque não me lembrava delas desde o início. Talvez estas tenham sido apenas um sonho, vulgo pesadelo, tão reais que me mantiveram acordada noites sem fim a contemplar a loucura, os meus medos e os meus cabelos.

Nesse tempo sem conquistas, fingi todas as conquistas ser. Algumas sem ninguém perceber, outras, à vista plena de todos, que riam simplesmente por eu me achar algo. Percebi que nesses tempos a minha maior distinção era a maneira como eu tinha cessado a minha alma e o meu ser, sem nunca fingir que eles não existiam, desprezando-os apenas, pois não queria encontrar-me frente a frente com eles, ou seja, frente a frente comigo. Quando não me deram os parabéns por esta conquista tão valorosa, fiquei algo confusa. Como podiam eles não notar se eu estava mesmo ali à sua frente, sem alma e sem ser? Como podiam eles não perceber a minha recusa a existir?

A partir desse dia, deixei sequer de ver o reflexo no espelho. Tornei-me apenas uma ideia, confusa, complicada e não muito bem pensada. De repente, passei a ser o nada, a ser só a vontade de ser alguém. Olhei de novo para o piano. Limpei-lhe o pó, mas nunca me sentei no banco. Fiquei de pé, à espera que ele, o resto de mim, aparecesse. E a verdade é que apareceu, só ao fim do dia e com medo, talvez de mim, o que não entendi porque ele era eu. Ficamos os dois parados, a olhar um para o outro à espera que um cedesse. Eu, claro, não cedi, pois, ao ceder, acabaria com a minha conquista de não ceder. E essa era das únicas conquistas que não se poderiam atirar para um canto da sala e ver apodrecer. Era, portanto, uma das mais importantes de todas. Finalmente, percebi que ele não ia ceder, porque ele era eu. E eu nunca cedia.

Até que cedi. Sob o peso da minha mente finalmente sucumbi a mim própria. E as conquistas foram desaparecendo, uma por uma, até não sobrar nada. Primeiro, o orgulho, depois o desprezo, depois o choro que dentro de mim ficava. Mas no fim, quando voltei a contá-las esperando que nenhuma lá estivesse, encontrei duas. O meu ser e a minha alma, as minhas maiores conquistas voltaram, e com elas voltei eu.

Nesse dia até pensei que as memórias tivessem ficado no outro tempo, aquele onde eu era nada, mas a verdade é que não voltei a tocar piano.

Alícia Yan, 12.º LH2

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