modos de ver e de ouvir

... a propósito do Dia Mundial da Música [1 de outubro]





            PIANO DE PALAVRAS

Na demanda de realidades etnográficas da região em que estamos insertos, encontrámos um informador que era sobejamente conhecido pela sua habilidade em adivinhas e perguntas de algibeira, quer a decifrar, quer a propor. Numa das nossas conversas, ele lançou-nos logo a seguinte:

Sou corpo de muitas línguas
E com elas todas falo;
Quando estou com quem me entende
Para dar gosto não me calo.

Na altura, tendemos para o livro como solução; após a explicação, passou a ser óbvia a opção pelo piano. A conversa continuou e subitamente ele perguntou:

Tenho folhas sem ser árvore
E capa sem frio ter;
E, sem falar, dou lições
A quem me sabe entender.

Aqui era mais fácil: o livro!!!
A recordação desse dia (e do conteúdo) chegou pela curiosidade da relação com o atual momento, em que se celebra – simultaneamente – o dia da música e o (início do) mês das bibliotecas. Como “as palavras são como as cerejas – atrás de umas vêm outras” -, isso trouxe-nos à memória uma outra forma simples[1]/ texto breve da nossa coleção – uma quadra - , que (também) concilia as duas artes – Música e Literatura – com outras (não despiciendas).

Quatro coisas, neste mundo,
Eu desejava aprender:
Cantar bem, tocar viola,
Namorar e saber ler.

Em qualquer dos três casos, sugere-se que para se fruir uma forma artística são necessárias competências específicas. Isso até pode ser verdade se se tratar da emissão. A inclusão, por outro lado, da afetividade, revela que, afinal, a fruição, a receção, é acessível a todos.

A Música é a língua universal por excelência, aquela que sugere e provoca um manancial diverso de sensações, de ações, reações e – até – interações. O próprio vocábulo já ganhou extensão semântica e já se refere não só à arte, mas também ao produto individual.
Ninguém fica indiferente à Música e isso é visível nos inúmeros sinais da língua corporal (a maior parte das vezes inconscientes): tamborilamos com os dedos; batemos o pé; abanamos a cabeça; karaokamos, mesmo sem emitir som (como se estivéssemos a substituir os intérpretes); fechamos a mão, segurando-a com o polegar, num imaginário microfone; trejeitamos maestros e intérpretes; bamboleamos o corpo… Damos, finalmente, um expressivo sinal de satisfação quando o tema acaba, como se recebêssemos e agradecêssemos a ovação.
Tudo é real num mundo outro para onde nos deixamos transportar por sete notas (e respetivos apêndices) e noções de ritmo (diferente em cada parte do mundo).
Portanto: sem se notar, fazemos o mesmo quando lemos um livro…
Paulo Correia de Melo
2014



[1] Seguindo a perspetiva de André Jolles. (Jolles, A. (1976). Formas simples – Legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste [trad. de Álvaro Cabral]. São Paulo: Editora Cultrix)

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