aprendendo de poetas...
... sobre Abril e as promessas
“O que é a poesia se não uma magia branca, para fazer recuar as forças tenebrosas que querem destruir a vida?!”
Natália Correia
Perante uma força bruta,
que nos quer seus reféns, limitando o nosso ser e obrigando-nos a ser aquilo
que não somos, a maioria de nós, provavelmente, não lutaria pelo seu “EU” e,
conformado, seria mais um no meio de tantos outros, produto de uma restrição
governativa.
Mas pessoas como Natália
Correia não se resignam com essas limitações, sejam elas aplicadas a si ou aos
outros.
Têm a coragem de se
revoltar e nunca desistir daquilo em que acreditam, impulsionando os demais,
que até aí não tinham sido capazes, a revoltarem-se.
Entre 1945 e 1969,
participou ativamente em vários movimentos de oposição ao Regime Ditatorial do
Estado Novo, nomeadamente o MUD (Movimento de Unidade Democrática).
Em 1966, foi condenada a
três anos de prisão, com pena suspensa, pela publicação da Antologia da
Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, por ser considerada ofensiva.
Após o 25 de Abril, em
1980, foi eleita nas listas do PPD. Contudo, ainda nesse ano, passou a
independente, assumindo posições (a favor do aborto, por exemplo) e afirmações [premonições]
polémicas: «As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis.
Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito
tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a
maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional
sofrerão gravíssimas ruturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por
falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só
haverá muito ricos e muito pobres.»
[1]
Em nome da liberdade, da
igualdade, da justiça e da cultura, confrontou o governo, sem nunca ceder ou
recear as afrontas ou retaliações do mesmo.
De uma forma notável,
através da poesia, conseguiu defender os seus ideais, criando sempre polémica e
controvérsia, revelando a sua personalidade forte, livre e vigorosa.
Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
p' ra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante
Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte
Natália Correia,
in "O Nosso Amargo Cancioneiro"
Rita Almeida, 10.º CSE
[1] In "O Botequim da Liberdade", de Fernando Dacosta
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