promessas de abril
DEMOCRACIA
Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incenso
e haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incenso
e haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»
Nuno Júdice (2008). A matéria do poema. Lisboa:
Publicações D. Quixote
A obediência ou sujeição torna-se coisa tão habitual
que os homens, na sua maioria, jamais procuram investigar as suas origens ou
causas, tal como em relação à lei da gravidade, à resistência ou às leis mais
universais da natureza.
David Hume. Ensaios
morais, políticos e literários. Lisboa: INCM.
Cidade Imaginária, de Nadir Afonso |
O estado exerce uma autoridade sobre os aspetos mais diversos e comuns da vida dos indivíduos em sociedade. A regulamentação através da qual o estado organiza a sociedade delimita a liberdade dos indivíduos. Assim sendo, por que sentimos como imperiosos a força do estado e o cumprimento da lei? Por que aceitamos os limites à liberdade individual que são impostos pelo estado?
Uma resposta para esta questão é que consideramos legítima a autoridade do estado e estamos dispostos a aceitá-la. Porquê? Várias são as teorias apresentadas que justificam a existência do estado e a sua autoridade legítima sobre os indivíduos. Uma dessas teorias foi apresentada em 1689 por John Locke, nomeadamente na obra intitulada Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil.
Para Locke, o estado tem origem num contrato social com base no qual os indivíduos aceitaram de livre vontade submeter-se à autoridade do estado. Homens livres e iguais, através de um contrato social, decidem sair do estado de natureza e entrarem na sociedade civil. O contrato social consiste num acordo no qual cada indivíduo prescinde de uma parte dos seus poderes (o poder de orientar a sua vida de acordo com o que considera melhor e o poder de punir quem infringe a lei natural) e os atribui a um governo que passa a ser detentor desses poderes. É o caráter voluntário da entrega do poder a um poder político que dá legitimidade ao estado. Por isso, o estado não adquire um poder absoluto sobre os indivíduos, mas apenas o poder para executar o que os indivíduos sozinhos não conseguiam alcançar, a saber, preservar em segurança a vida, a propriedade e a liberdade. O mandato do estado, isto é, aquilo que legitimamente pode fazer, consiste na promoção do bem comum e está limitado por leis conhecidas publicamente, aplicadas por juízes retos e imparciais, que impedem o exercício arbitrário e abusivo da força.
Mas, significa isto que Estado e Democracia são sinónimos? Não. Um Estado pode não ser democrático, pelo menos no sentido de que a democracia consiste no direito político de usar publicamente a única arma de que legitimamente pode dispor: a palavra. Ou seja, um Estado pode assegurar a vida, a propriedade e a liberdade sem que, necessariamente, assegure a democracia.
Para que um Estado seja democrático os que submetem à sua autoridade têm de possuir os meios para exercer o poder da palavra. Tal implica, por um lado, existência de mecanismos que permitam a expressão pública da opinião. Mas, exige-se também que os cidadãos não tenham receio de se expressar. E, para isso, a paz, o pão, segurança, saúde e trabalho têm, de alguma forma, de estar assegurados. Num Estado onde há medo, insegurança, onde as pessoas não têm os meios suficientes de sobrevivência, não é possível à democracia vingar.
Isabel Bernardo
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