promessas de abril
CARTA A MEUS FILHOS
SOBRE O LEGADO DA LIBERDADE
Não sei, meus
filhos, como será a liberdade no futuro.
Não sei nem
consigo imaginar como será o vosso próprio futuro em liberdade.
Só sei que a
falta de liberdade é que dói e rói na alma.
Eu sei que é difícil
para vós a imaginação de um tempo e de um espaço em que a liberdade era só mais
uma palavra do dicionário. Afinal, para quem sempre viveu em liberdade a falta
dela é quase um absurdo.
No entanto,
gostaria de deixar-vos um pequeno testemunho de quem passou por esse tempo e
nesse espaço. É que eu sou desse tempo e desse espaço!
Eu sou do
tempo em que as crianças do sexo masculino, que nasciam, deixavam cravada no
coração da mãe a amargura de serem os futuros meninos de sua mãe... nos
plainos... abandonados...
Eu sou do
tempo dos jovens que cresciam sempre com a angústia de, no melhor tempo da
nossa vida, o destino nos levar para bem longe... quem sabe para as longínquas
terras do ultramar... quem sabe para a morte...
Eu também sou do
tempo dos jovens - como eu - que não queriam comemorar aniversários. Afinal,
mais um ano seria sempre um passo em frente para a mobilização obrigatória...
Eu também sou
do tempo do espetáculo degradante que a única televisão nos trazia com a
imagem daqueles que combatiam, lá longe, aqueles que desejavam “um Ano Novo
cheio de propriedades” quando muitos deles já propriamente não existiam...
Já tinham perecido numa guerra que eles não entendiam...
Eu também sou
do tempo em que “Deus, Pátria e Família” eram os grandes conceitos
orientadores da nossa sociedade. E ao fim e ao cabo, a maior parte das
famílias, por força de uma guerra estúpida, vivia da ausência do pai... do
marido... do filho...
Eu também sou
do tempo de ver grandes senhores – hoje, grandes democratas –, usando o seu
inquestionável poder totalitário para agredir fisicamente os pobres
trabalhadores só porque a camioneta do trabalho não permitia, na totalidade, a
manobra automobilística do enorme Mercedes. Preto - como convinha, aliás -.
Eu sou do
tempo em que o debate não tinha significado e duas pessoas juntas já eram
consideradas suspeitas de conspiração.
Eu sou do
tempo de passar em Aveiro, com minha mãe, pelo local da reunião de democratas,
e de ver o triste aspeto em que ficara a sala após a intervenção policial que
não gostava dessas democracias...
Eu também sou
do tempo de ver a nossa cantanhedense Avenida da Estação completamente pejada e
cercada de guardas só porque os democratas – só os identificados pela PIDE –
tinham decidido reunir-se ali para fazer um comício eleitoral. Resta dizer que
quem quisesse conhecer outras ideias não podia entrar, porque a Guarda não
deixava...
Eu também sou
do tempo dos bufos, dos vampiros, das autoridades policiais que
batiam primeiro e interrogavam inquisitorialmente depois... Quando
interrogavam.
Eu também sou
do tempo da Comunicação Social amordaçada, manietada, enfeitada...
Eu sou do
tempo de sentir que o meu pai tremia com as minhas idealizações nas composições
escolares, temendo que julgassem que era ele que me incitava a propagandear
irrealidades para o momento...
Mas eu também sou do tempo dos
segredos, das palavras em silêncio, dos olhares que muito diziam e muito
queriam dizer!...
Mas eu também
sou do tempo daqueles que, na longa e escura noite, iam escrevendo nas paredes
a palavra mais proibida do meu país!...
Mas eu também
sou do tempo daqueles que diziam NÃO! e que semeavam flores de esperança
na noite triste!... Afinal, como diria o poeta...
“Mas há
sempre uma candeia
dentro da
própria desgraça
há sempre
alguém que semeia
canções no
vento que passa”[1]
E com esse
tempo surgiram aqueles que semearam canções e semearam cravos nas coronhas das
espingardas dos meninos de suas mães...
Foi em Abril, a metáfora da abundância.
E Abril deixou para trás a tirania, a prepotência, a
opressão... E trouxe a liberdade, a alegria, a palavra quente, o sorriso...
E trouxe a ideia, o pensamento, a necessidade, o
desejo...
E
trouxe os meninos às suas mães e aos seus pais, sem malhas de império
triste e decadente, tecendo a morte...
E trouxe a facilidade a todos os que – como o vosso
pai – foram tecendo a consciência inabalável de que não é a guerra e a
violência que resolvem as questões, de poderem agora renegar tudo isso
convictamente.
Não sei, meus
filhos, que tempo será o vosso e o nosso.
Sei que a
liberdade não é só um dia de feriado, mas um anseio constante que deve inundar
cada coração para que possamos dizer com o poeta: “sou livre livre livre”[2]!
Paulo Correia de Melo
25 de Abril de 1997 [3]
[1] Manuel Alegre
[2] Manuel Alegre
[3] Este texto foi publicado no jornal Independente de Cantanhede e foi difundido no programa “Escola Aberta”, na Rádio do Concelho de Cantanhede
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