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                                           ...a Gândara e os seus escritores



A região da Gândara está geograficamente situada entre o norte do concelho da Figueira da Foz e o sul do concelho de Vagos e integra a maior parte da área dos concelhos de Mira, Cantanhede e de Montemor-o-Velho. Existem vários autores que, ao caracterizarem a região, não são consensuais quanto aos reais limites geográficos desta mesma Gândara. Quanto a características “sui generis” da população gandareza também existem vários autores que as identificam, mas aqui as semelhanças são mais consensuais – população pobre, que viveu maioritariamente da agricultura complementando-a com a atividade florestal (pinhal) e o vinhedo.

Sem menosprezar outros autores, Carlos de Oliveira e António Canteiro talvez sejam os autores que melhor retratam a Gândara na sua grandeza:


Febres

Os campos adormecem, sonolentos,
a tarde morre em êxtase, também,
sob a carícia duns fulgores sangrentos
que o sol derrama, a naufragar, além…

Trindades a soar, em mil lamentos,
no silêncio sem par da terra rica!
-Gemido bronzeo que se perde aos ventos,
que em nossa alma eternamente fica!

Abanam lentamente os pinheirais …
É a brisa a gemer em ternos ais
toda a poesia desta minha aldeia!

Enxada ao ombro passa um cavador
e eu desabafo a minha eterna dôr:
-Quem me dera comer da tua ceia!
              Carlos de Oliveira - Febres, Natal de 1937


    “Gândara: terra da urze, da flor estival da giesta, das vagas indomáveis, das areias percucientes onde o tojo e os fetos proliferam, dos guinchos das gaivotas na língua de fogo no mar, dos sinos que tombam e se erguem nas aldeias, dos barcos de salitre, dos salgueiros bebericando nos ribeiros, do esplendor das tílias e das acácias, do pôr-do-sol em áscua, das lágrimas dos areais, dos telhados rubros, das rugas, das mãos negras e das cãs prostradas nos umbrais, dos pescadores crestados pelo sal e pelo sol e das viúvas trajando até ao fim as noites cor-de-hulha. É neste éden maculado pelo progresso que o poeta grita. Ele não suporta o vaivém diabólico dos carros e prefere deslizar na pureza de um fio trémulo de azeite.”
António Canteiro


Muito mais se poderia falar da Gândara, pois, felizmente, há vários autores que perspetivam a região de muitas outras formas. 

Fico-me por alguns dos nomes mais ou menos (re)conhecidos a nível regional e nacional, quer pela qualidade da escrita quer pelo reconhecimento adquirido através de prémios literários com que já foram galardoados.

Figura 1 - Carlos de Oliveira
Carlos de Oliveira, nome maior da cultura gandareza, nasceu em 1921 em Belém do Pará (Brasil) e passou grande parte da sua vida em Febres, exatamente onde atualmente se situa a Casa Carlos de Oliveira – um espaço cultural que evoca o grande escritor e que contem um enorme espólio do mesmo e da sua esposa.  Carlos de Oliveira cresceu num meio rural, onde seu pai exerceu a medicina. A vivência e as imagens dessa realidade de grande pobreza iria para sempre influenciar grande parte da sua obra, provavelmente a razão do nascimento do neo-realismo literário em Portugal.

Carlos de Oliveira tornou a Gândara, as suas características geográficas, físicas, humanas, as vivências, as histórias em registos literários como “Mãe Pobre -1945”, “Terra de Harmonia -1950”, “Micropaisagem -1969” e a compilação das suas obras poéticas em “Trabalho Poético -1977/8”. Em termos de romances não é demais realçar as grandes obras “Casa na Duna -1962”, “Alcateia -1944”, “Pequenos Burgueses -1948”, “Uma Abelha na Chuva -1953” e “Finisterra -1978”.



É evidente que Carlos de Oliveira não se ficou por aqui. Para além de outras obras menos divulgadas, foi um importante colaborador e responsável das revistas como “Altitude”, “Seara Nova” e “Vértice”, documentos de enorme utilidade para todos os estudiosos da literatura nacional e estrangeira.

Após a morte de Carlos de Oliveira, verificou-se um espaço de tempo sem edição de obras que focassem a temática gandareza. Até que aparece Idalécio Cação nascido em 1933 em Moinhos da Gândara. Após a publicação de várias obras e artigos de opinião, na década de 90 dedica-se à ficção onde mostra nos “seus contos um profundo sentido de compreensão e denúncia dos problemas da sua região natal, isto é, de toda a Gândara figueirense”.

Figura 2 - Idalécio Cação
“Gândara antiga -  instrumentos, tradições, ofícios, trabalhos, tipos populares: apontamentos etnográficos-literários- 1997”, “Sobre a Gândara e a casa gandareza- 1999”, “Crónicas gandarezas- 2006” e “Do alto destas ameias- 2008” são algumas das obras, contos e romances publicados pelo autor figueirense.



Outro autor, mas muito ligado à cultura popular, empenhado em recuperar trajes, artefactos, utensílios agrícolas, histórias sobre a Gândara, e fortemente influenciado por Carlos de Oliveira e Idalécio Cação (entre outros escritores), é António Castelo Branco, nascido em Covões e onde viveu grande parte da sua infância e onde ainda atualmente passa grande parte do seu tempo. 

 
Figura 3 - António Castelo Branco
Este auto lançou nos últimos tempos duas obras intituladas “Sabores de ontem,  manjares de hoje” e mais recentemente “Os Lazarilhos da Gândara- 2010”. Mas o seu trabalho de pesquisa continua em prol da riqueza gandareza  espalhada pela região e pela concentração de um grande espólio num “museu” em forma de casa gandareza que fora outrora dos seus mais diretos familiares.

Outro grande nome da cultura gandareza é Ferro Santos, nome literário do distinto médico Dr. Fernando Santos que tem dedicado grande parte da sua vida profissional ao povo gandarês, cuja região, usos e costumes lhe têm inspirado a escrita das suas obras.


Figura 4 - Ferro Santos
Segundo António Fresco, autor da capa e apresentador da mais recente obra “Contos a Descoberto”, afirma a páginas tantas que os textos de Ferro Santos “resultam de uma exímia conjugação de poéticos relatos da dura vida gandaresa de antanho, das paisagens e lugares únicos e das pitorescas personagens da freguesia (e outras inventadas ou de longe), tudo bem costurado com um fino fio, feito do domínio perfeito da língua e da escolha das palavras, montadas, umas nas outras, num perfeito equilíbrio de estética e significado, mas de leitura fácil e agradável”.

Autor de vários contos e romances, Ferro Santos, para além de nos mostrar a realidade da região de outros tempos, também tem contribuído solidariamente para causas nobres como Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cantanhede e Associação Gira Sol com as receitas das vendas de algumas obras a reverterem para as citadas associações.

Por fim, fica a referência a algumas obras editadas designadamente “Contos do meu Rosário”, “Histórias da Arca da Velha”, “22 Contos de Reis”, “Pedras Bárbaras” e mais recentemente o título “Sempre”.

Para terminar esta exposição, e por ser um escritor galardoado com vários prémios, não poderia esquecer o nome de António Canteiro, pseudónimo de João Carlos da Cruz, natural de São Caetano.

Figura 5 - António Canteiro
Com o romance “Parede de Adobo” começou por receber a Menção de Honra do Prémio Literário Carlos de Oliveira em 2005, seguindo-se outras obras também premiadas como “Ao Redor dos Muros”, “Largo da Capella”, “O Silêncio Solar das Manhãs” com o qual recebeu o Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama em 2013. Já em 2015, foi agraciado no Dia Mundial do Livro, em Loures, com o Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho com a obra intitulada “Logo à Tarde Vai Estar Frio”. 




Muitos nomes e obras ficaram por referir, não há artigo escrito nenhum que tenha um fim, alguma coisa fica sempre por dizer. O desafio que daqui lanço aos leitores e adeptos da história gandareza é também eles contribuírem para o seu enriquecimento.
                                                                                              Abril 2016
Rui Melo





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