a insustentável leveza dos ideais...
... ou «É desta massa que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade»
José Saramago
Pediram-me que,
hoje, cantaescrevesse os parabéns a José Saramago. Seria um bolo com 92 velas
para soprar. Como gosto de lersaborear
Saramago, gostei da ideia. Mas o gosto desvaneceu-se um pouco, porque
também me lembraram que hoje é Dia
Internacional para a Tolerância.
Desconhecia a
minha afinidade com o homenageado, pois também «Eu sou contra a tolerância, porque ela não basta. Tolerar a existência
do outro e permitir que ele seja diferente ainda é pouco. Quando se tolera,
apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade
de um sobre o outro. […] A
intolerância é péssima, mas a tolerância não é tão boa quanto parece.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas, da qual estivessem excluídas a
tolerância e a intolerância» (Saramago, 2003).
Segundo a Declaração de
Princípios sobre a Tolerância, tolerância não é nem indulgência, nem indiferença. É o
respeito e a valorização da riqueza
e da variedade de culturas do mundo em que vivemos,
é o respeito pelas diversas formas de expressão e pelos diferentes modos de ser humano.
«Uma vida social harmoniosa depende de um
fluxo constante de julgamentos imediatos […] - somos todos leitores de mentes» (Goleman, 2006), pelo que
deveremos estar munidos de acuidade empática que nos permita captar o que vai
na mente das outras pessoas e sermos sensíveis ao seu mundo interior.
A maturação do
intelecto, ao nível das estruturas básicas da empatia, ocorre bastante cedo no
ser humano (por volta dos quatro anos) e vai sendo progressiva e habilmente
refinada pelo contacto com o(s) mundo(s). Por isso mesmo, também pode ser
moldada / educada para ser ancorada em padrões de informação adequados a uma
perceção correta da realidade. A família, a escola, os relacionamentos
desempenham, também aqui, um importante papel na formação da “visão mental” que
nos permite entender o mais simples algoritmo social e / ou entender um
comentário irónico ou sarcástico, sem grande esforço. E, na escola, a aula de
Português, bem como outras, é um espaço privilegiado para, com um pouco de tato
pedagógico e gosto pela língua / literatura, provocar, desenvolver e modelar a
sensibilidade do Eu ao Tu e ao Mundo.
Todavia, a
tarefa vai-se tornando cada vez mais árdua, parecendo mesmo que a epidemia
ficcional imaginada por Saramago começa a deslizar insidiosamente da obra para
a realidade.
O Bernardo
chegou à escola como qualquer outro aluno do 10.º ano. Na base de dados era o
aluno 11111, da turma XY, e foi assim que entrou na sala de aula: um entre
vinte e sete. Educado, sempre sozinho (na aula e no recreio), reagia com alguma
violência a mudanças tão simples como a alteração da sala ou a ida para o
segundo piso, embora hoje já o faça com relativa normalidade.
O Bernardo é uma
estranha combinação de Asperger e Autismo, síndromas de percentagens difíceis
de determinar na combinação e, consequentemente, diagnóstico complexo de
elaborar e tratamento difícil de definir.
Domina
relativamente bem a linguagem escrita simples, mas é “cego e surdo às jogadas e
às fintas do mundo social”. Escapa-lhe o significado de qualquer comentário, observação
ou interpretação subjetiva ou abstrata. Responde a questões diretas ou a
indicações estereotipadas de tarefas, quase os únicos momentos em que sintoniza
com a aula. Está quase sempre ausente no mundo que cria, fazendo rolar
velozmente entre o indicador e o polegar, durante noventa minutos, uma
estreitíssima tira de papel, até esta se desfazer. Nem a maior competência em
acuidade mental conseguirá perscrutar, certamente, as imagens desse inextricável
mundo, as relações de pensamento que por lá
se estabelecem ou as associações que por lá
se fazem. Mas lá haverá alguma lógica que justifique perguntas
extemporâneas (“Stôra, stôra, que idade é que a stôra tem?”) ou conclusões
desconcertantes (“Faz hoje anos que D. João morreu? Então ele morreu há vinte e
um anos? Quer dizer que ele morreu em 1993?” – a propósito de um personagem de Frei Luís de Sousa). Difícil é, para
quem dirige a aula, encontrar o que quer que seja que justifique as reações,
por vezes cruéis, dos colegas às atitudes do Bernardo, que ingénua e
inocentemente pergunta “Stôra, de que é que se estão a rir?”.
Não, não é a
ficção que entra diariamente na sala de aula e o Bernardo não é o Raymond, o
“sábio autista” do filme Encontro de Irmãos, personagem brilhantemente desenvolvida por Dustin Hoffman. E a professora
sente-se frequentemente a “mulher do médico”, personagem de Ensaio sobre a Cegueira, de José
Saramago, chegando a desejar, muitas vezes, quebrar
o jejum como a visionária Blimunda, para não ter de enxergar como somos maus.
A visão mental
resulta, afinal, de uma simples operação de adição: sensibilidade (coração) +
capacidade de discernimento (razão) = a equilíbrio, capacidade de compreensão e
aceitação, consciência social que “exige que tenhamos a noção do Eu, que nos distingue dos outros”,
porque “sem visão mental, os nossos relacionamentos seriam ocos”.
“Até quinta, stôra, até quinta-feira!”
“Até, quinta, Bernardo!”
(aumentando o volume da voz)
“Até quinta, stôra, até quinta-feira!
“Ciao,
Bernardo, até quinta-feira!”
“Chega, Bernardo! Que chato! A stôra já
ouviu!...”
(baixando o volume, com ar humilde e
assustado)
“Até quinta, stôra!”
“Adeus, Bernardo! Até quinta!”
Até apetece
roubar as palavras a Saramago e “dizer
que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”.
«A palavra mais feia da língua portuguesa é Intolerância e a
segunda mais feia é
Tolerância»
(José Saramago)
Eu gosto da palavra Compreensão. Acho-a HUMANA!
Leonor
Campos de Melo
Lista
de referências bibliográficas:
Goleman, D. (2006). Inteligência social. Lisboa: Círculo de Leitores.
Saramago, J. (2003). GloboI. s/l
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