O guardador de pessoas
a propósito da evocação do aniversário da morte de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa por Almada Negreiros |
Ao longo de toda a sua vida, Fernando Pessoa procurou encontrar-se como pessoa, isto é, como uma pessoa vulgar, igual a tantas outras. Mas, por ironia do destino, o nome que carregava pregou-lhe uma partida, ao fadá-lo, desde muito cedo, com a implacável sentença da pluralidade.
Ao olhar para dentro de si, descobre não ser apenas um, nem dois, mas muitos outros, múltiplos “eus” que se enfrentam, se chocam, se diferenciam ou se tocam, nalguma comum coincidência. Drama em gente! Um que procura atingir o que o outro nunca alcançou; outro que inventa a felicidade possível em palmares inexistentes; outro que nega o pensamento tão dolorosamente presente nas coisas mais banais da sua existência, procurando raspar a tinta com que o pintaram para, assim, desencaixotar as suas emoções verdadeiras; outro que tenta encontrar na filosofia dos antigos, o equilíbrio necessário para atingir a ataraxia e, deste modo, levar a vida sem grandes sobressaltos; outro que canta o progresso e os maquinismos em fúria fora e dentro de si, mas que depressa cai num estado depressivo que o leva a não querer nada e que deseja apenas estar sozinho; outro; outro e outro….perdidos num labirinto infernal que não conduz a lado nenhum. E é esta condenação que Pessoa tem de pagar pela sua diferença. Viagem à roda de si ou dos outros, tanto faz! O um é todos e todos se agarram a ele numa tentativa desesperada de encontrar a desejada unidade, juntando os fragmentos de “um mar de além…”, conscientemente assumido na dor de pensar.
O que torna mais trágico ainda este fenómeno da heteronímia é o facto de estes “eus” não se conseguirem libertar do seu criador, implodindo juntamente com este, ficando todos presos nos seus próprios escombros. Fernando Pessoa guardará dramaticamente dentro de si todo um mundo que foi criando e com o qual se habituou a (con)viver.
“Quem sou eu? Quem és tu? Quem somos nós?”- ter-se-á o poeta interrogado, vezes sem conta. E ele, afinal, quem foi? Talvez um guardador de pessoas… em Pessoa!
Madalena Toscano